Artigo

Pe. Rogério Guimarães

ANO DO LAICATO 1: OS LEIGOS NA ECLESIOLOGIA DO POVO DE DEUS

Por Pe. Rogério Guimarães

 

Por ocasião do Ano do Laicato, propomos uma reflexão sobre essa temática em 3 pequenos artigos. Nossa reflexão parte da compreensão da Igreja como Povo de Deus, compreensão esta assumida pelo Concílio Vaticano II; depois abordaremos a identidade do leigo e, na sequência, a missão do leigo.

 

Segue a primeira reflexão.

 

A Constituição Dogmática Lumen Gentium, antes de tratar da hierarquia da Igreja, fala de uma categoria teológica que é a base da dignidade e pertença a Cristo de todos os batizados, a categoria Povo de Deus. No capítulo segundo desta Constituição destacam-se, dentre outros, os temas do sacerdócio comum dos fiéis, o sensus fidei, e o caráter universal do povo de Deus e sua índole missionária. “O conceito ‘Povo de Deus’ serviu bem ao Concílio para dizer que todos os batizados têm parte na dignidade sacerdotal, profética e real do povo de Deus”[1].

 

Nessa definição abre-se um novo paradigma eclesiológico: “não se trata de uma Igreja segundo o critério do poder, não se põe em relevo a Igreja sociedade hierárquica, dotada de uma autoridade divina absoluta. Deixa de lado a prioridade dada a noção de ‘sociedade’ [...] e acolhe a visão de uma ‘comunidade’ da reconciliação, da comunhão, realizando-se concretamente em uma comunidade, feixe de comunidades, caracterizadas pela participação, pelo serviço, pelo diálogo e pela colegialidade”[2].

 

Esse passo dado é de suma importância, uma vez que retoma a centralidade de Cristo na Igreja, seu protagonismo e a participação de todos os batizados em sua missão. Não se deve mais entender os ministérios como que uns em detrimento de outros, o clero em detrimento dos leigos. Tradando do sacerdócio comum dos fiéis, o número 10 da Lumen Gentium destaca que “a todos é dada a graça da participação no sacerdócio de Cristo. Estabelece, a seguir, a diferença, sem separação, entre ‘sacerdócio comum’ e ‘sacerdócio ministerial’. O sacerdócio comum é a realidade mais ampla que diz respeito à totalidade do Povo de Deus. Todos os batizados devem vivê-lo diante de Deus e dos outros”[3].

 

Importa ressaltar o passo dado na autocompreensão da Igreja, não mais entendida a partir de um esquema dualista de sociedade e Igreja, mundo e Reino de Deus em contraposição. A Igreja não existe para si mesma, mas para os outros. Ela não se identifica com a sociedade perfeita, a partir de um esquema piramidal onde, na verdade, a Igreja era somente o seu clero, e os leigos, apenas o destinatário da evangelização: “Definir e declarar a Igreja como Povo de Deus inaugura um novo tempo, onde a pertença e as questões internas e externas não acontecem (ou não deveriam acontecer!) mais de modo piramidal, mas num processo mais amplo, capaz de envolver a todos, pois ‘todos’ os batizados fazem parte deste povo e comungam da mesma missão de Cristo e em Cristo e Nele possuem a mesma dignidade, caminhando, cada qual a seu modo, à missão e vocação a que foram chamados”[4].

A eclesiologia do povo de Deus tem sua fundamentação em Jesus Cristo e está enraizado na história da salvação. É na comunhão de Cristo que se funda a comunhão dos fiéis entre si e das comunidades umas com as outras.

 

Há um caráter universal desse povo, que não se identifica com alguma nação ou etnia específicas, mas é o conjunto daqueles que foram inseridos no Cristo pelo batismo e, de algum modo, daqueles que são chamados a unir-se a Ele e o são de modo diverso. Falar da eclesiologia Povo de Deus significa acolher na reflexão teológica da Igreja a sua multiforme realidade.

Outra característica dessa eclesiologia é que a Igreja se entende como convocada, não para “decidir o que deve ser feito, mas para ouvir e celebrar o que Deus decidiu e fez”[5]. Sendo a condição do povo de Deus a condição de peregrino, esse conceito eclesiológico acolhido pelo Concílio Vaticano II destaca a índole escatológica da Igreja “que está a caminho pelas estradas empoeiradas da história, rumo a sua pátria eterna”[6].

 

Esse estar a caminho na tensão escatológica abre os horizontes da Igreja em sua missão, não mais no entendimento estreito da cristandade, mas numa abertura humilde ao diálogo com o mundo que se apresenta laico, que tem suas razões de ser. Ela deve aí exercer sua missão acolhendo o que há de bom e em conjunto, superar as incoerências do mundo e de si mesma.

 


[1] KASPER, W. A Igreja Católica: essência, realidade, missão. São Leopoldo: Unisinos, 2012, p. 170.

[2] JOSAPHAT, C. Vaticano II: a Igreja aposta no amor universal. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 74.

[3] CALIMAN, C. Povo de Deus/Igreja, In: J. D. PASSOS; W. SANCHES (Coords). Dicionário do Concílio Vaticano II, São Paulo: Paulus, 2015, pp. 757-764, p. 761.

[4] KUZMA, C. Uma base teológica a partir do conceito de Povo de Deus.

[5] KASPER, A Igreja Católica, p. 173.

[6] KASPER, A Igreja Católica, p. 171.